terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

DEUS SABE DIVIDIR?

Já reparou que os bairros mais pobres tem menos árvores. Como se o direito de respirar melhor fosse dos mais ricos. Em muitos lugares onde o jovem Zizo trabalhava também não havia lixo acumulado nas esquinas, nem aqueles cachorros de pelos maltratados revirando o lixo, mas cães que iam a cabeleireiro, tomavam banho com xampu, no frio vestiam capa de lã e comiam mais e melhor que as crianças do seu bairro, ração cara, carnes especiais e até danoninho...
Zizo levantou com dificuldade o carrinho para subir numa calçada. E foi pensando: "Não que cachorro deva ser maltratado, mas criança também não pode ser tratada de qualquer jeito, nem gente grande, nem velho, nem ninguém".
De repente descobriu:
-Deus não sabe dividir.
Lembrou-se da avó. Ela achava que deus sabia das coisas. vai ver que de tão longe, não dava para prestas atenção em tudo.
Zizo ajeitou melhor a caixa de ovos. "-Nós. acho que é isso. Nós é que não sabemos dividir. Não eu, nem meu pai, ou minha avó. Os que mandam é que não sabem. quem vai ensinar? Poderia reunir a meninada, sair com faixas. cada bairro teria sua horta, seu parque,suas árvores. Comida para gente, para gato, cachorro. A criançada da cidade plantaria. depois do colégio, em lugar de trabalar com carrinho, ou dentro de escritório, ou de correr pelas ruas de banco em banco, plantar e colher. Todas as pessoas ajudariam: os que ficam sem fazer nada, tristes, sentados nas praças, as mulheres nervosas que só fazem tricô e falam mal dos outros. Os adultos, acordam trabalham, compram, dormem de novo, sem dizer é agora, para dar uma virada no mundo. Como se o mundo não precisasse".
De tão distraído com seu pensamentos quase passou o edifício;olhou o número outra vez, entrou. foi pela garagem levando o carrinho pesado. Colocou as compras no elevador e subiu. A empregada estranhou que o menino conhecesse o patrão, disse que estava lá dentro terminando de almoçar.
Carlos apareceu para saber o que acontecia. Cumprimentou Zizo. Contara para a família: um garoto diferente, lá do supermercado, gostava de barcos.
Perguntou se o pequeno entregador comera alguma coisa.
Ele mentiu que sim e agradeceu.
-Não que comer um doce?
mandou que  a empregada servisse gelatina.
Pediu que depois Zizo fosse até a sala, para ver uma surpresa.

Trecho do livro "Lobo do mar no supermercado" de Julieta Godoy Ladeira, São Paulo, Editora Scipione 1988, p 22-3